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Quénia. Presidente retira projeto de lei cuja contestação provocou 23 mortos

por Graça Andrade Ramos - RTP
Presidente William Ruto retira projeto de lei cuja contestação provocou 23 mortos no Quénia Reuters

Eram medidas "necessárias" para equilibrar as contas do Quénia, mas o presidente queniano, William Ruto, decidiu retirar o projeto de lei que previa um aumento generalizado de impostos e que provocou protestos violentos em todo o país.

Números oficiais indicam pelo menos 23 mortos em confrontos entre polícias e manifestantes esta terça-feira, com alguns grupos a referirem mais de 50 vítimas mortais.

"Inclino a minha cabeça e não promulgarei a Lei das Finanças 2024, que será, portanto, retirada", disse William Ruto, considerando ter ouvido "atentamente o povo queniano, que disse alto e em bom som que não quer ter nada a ver com esta Lei".

"O país assistiu a uma expressão generalizada de insatisfação com a lei tal como foi aprovada, o que infelizmente levou à perda de vidas e à destruição de bens", acrescentou o chefe de Estado, ao tentar conter a crise mais grave em dois anos de mandato.
A contestação, iniciada em força há mais de uma semana, agrega sobretudo a juventude queniana, mobilizada através das redes sociais. Atingiu o auge na terça-feira, no terceiro dia de protestos, depois do Parlamento, onde o partido de Ruto detém a maioria, ter aprovado várias emendas ao projeto de lei, que deveria ser votado até domingo.

A polícia disparou munições reais contra milhares de pessoas que protestavam fora do Parlamento contra a aprovação da Lei das Finanças 2024, denunciaram várias ONG. Pelo menos 23 pessoas morreram e e cerca de cem ficaram feridas, três dezenas delas com ferimentos de bala.

Num ataque sem precedentes na história da independência do país desde 1963, a multidão invadiu, saqueou e incendiou vários edifícios do complexo que inclui a Assembleia, em Nairobi.

Registaram-se igualmente pilhagens na capital e noutras cidades e zonas rurais, em 35 das 47 regiões quenianas. Em Eldoret, no Vale do Rift, um reduto de Ruto, foram incendiados vários edifícios.

Medidas de austeridade
O presidente queniano propôs agora diálogo, prometendo ainda medidas de austeridade para reduzir despesas no gabinete da Presidência e do Executivo, incluindo viagens, a compra de veículos e renovações de gabinetes.

William Ruto apelou ainda a que o exemplo seja seguido pelo Parlamento e pelos governos regionais, em coordenação com as Finanças, para garantir que operam "de acordo com os seus meios", depois da mensagem clara do povo queniano.
"Precisamos de ter uma conversa com a nação, para avançar", afirmou o presidente.

A Lei das Finanças 2024 incluía aumento generalizado de impostos e a imposição de novas taxas em bens alimentares como pão e óleo.

Ruto justificou a necessidade do diploma, com o compromisso para pagar a dívida nacional. "Por cada 100 xelins" coletados em impostos, "61 vão para pagar empréstimos", lembrou.

A dívida pública do Quénia é atualmente de 70 por cento do Produto Interno Bruto do país. O Orçamento do Estado para 2024-25 prevê por seu lado despesas recorde de 4.000 milhares de milhões de xelins (29 mil milhões de euros).

"Como é que vamos gerir a situação da nossa dívida em conjunto?", questionou Ruto no discurso desta quarta-feira, oferecendo "um compromisso com os jovens da nossa nação, os nossos filhos e filhas". 
Apelos a novas marchas
O discurso não impressionou Hanifa Adan, figura de proa do movimento de contestação queniano, que o classificou de "operação de com", ou de marketing

Repórter num novo projeto informativo, o The Eastleigh Voice, Adan tem usado as redes sociais para agregar os protestos contra a lei, que classifica como "movimento imparável dos cidadãos".

"Nenhum grau de intimidação irá afastar ninguém disto", afirmava há dias a ativista na rede social X, sublinhando que o movimento é apolítico. "Não estamos afiliados com ninguém", garantia ainda a 22 de junho.
Com outros dois líderes do movimento, Boniface Mwangi e Hussein Khalid, Hanifa Adan anda escondida, depois de ter sido detida segunda-feira durante algumas horas, com receio de serem raptados e silenciados pelo governo queniano.

Esta quarta-feira, a jornalista reagiu na rede X ao discurso presidencial. 

"O projeto de lei foi retirado mas como vai devolver à vida todos os que foram mortos?", questionou Adan, apelando os quenianos a saírem à rua esta quinta-feira numa "marcha branca", em nome das vítimas, "os nossos caídos". "Não podem matar-nos a todos", sublinhou.
À Agência France Press, Hanifa Adan afirmou que "o tempo para conversar já lá vai". "Exigimos o fim da violência policial, o respeito pelos nossos direitos constitucionais e a liberdade de erguer as nossas vozes sem receio da prisão ou danos", referiu.

Nas redes sociais, mencionando a hashtag #tupatanethursday, ou "vemo-nos quinta-feira" numa mistura de swahili e de inglês, os manifestantes prometem não baixar os braços e continuar os protestos, entre exigências da destituição de Ruto.

Esta quarta-feira registaram-se manifestações a exigir a demissão de deputados que votaram a favor da Lei das Finanças 2024.
Boniface Mwangi, um ativista por justiça social, apelou a um "marcha de um milhão de pessoas".

"A arrogância foi-se, mas as mentiras persistem", denunciou na plataforma X. "Ontem, lançaram-nos patifes e polícia para matar manifestantes pacíficos. Isso não nos irá deter", prometeu.

Um pedido de doações por parte do movimento, para apoiar os feridos e as famílias dos mortos, conseguiu em oito horas coletar 14 milhões de xelins quenianos (101.900 euros).

A oposição oficial a Ruto não tem liderado os protestos, mas não deixa de aplaudir as dificuldades do presidente. "A auto-preservação entrou em ação" escreveu o senador da oposição Edwin Sifuna na rede X.
"Ficaram a dormir"
Num discurso esta quarta-feira, o vice-presidente Rigathi Gachagua pediu aos jovens para evitarem a perda de vidas e de bens, apontando o dedo aos serviços de informação, por terem dado "maus conselhos" ao Governo.

"Não teria havido desordem, mas ficaram a dormir no trabalho", acusou Gachagua, exigindo a demissão do diretor dos Serviços de Informação quenianos.

Terça-feira, o chefe de Estado do Quénia declarara que iria recorrer "a todos os meios necessários" para por fim à violência, incluindo mobilizar o exército.

William Ruto condenou então a invasão do Parlamento como um "ataque sem precedentes à democracia" e comprometeu-se a reprimir firmemente "a violência e a anarquia".

Ruto classificou ainda os protestos como “acontecimentos traiçoeiros”, afirmando que foram “infiltrados e desviados por criminosos organizados”.

Os Estados Unidos da América tentaram evitar a eclosão de mais uma crise grave, agora num dos seus maiores parceiros em África, lembrando a Ruto o "direito das pessoas a manifestarem-se de forma pacífica".

"Os Estados Unidos condenam a violência contra manifestantes inocentes e pacíficos", afirmou John Kirby, porta-voz da Casa Branca para a segurança nacional.

O Quénia é um país da África Oriental com uma população de cerca de 52 milhões de habitantes, e uma potência económica na região.

Todavia, o país registou uma inflação anual de 5,1 por cento em maio, com os preços dos alimentos e dos combustíveis a aumentarem 6,2 por cento e 7,8 por cento, respetivamente, de acordo com o Banco Central. O FMI exige medidas para controlo inflaccionário para libertar novas tranches de empréstimos.

A lei financeira em causa visava arrecadar mais 2,7 mil milhões de dólares em impostos como parte de um esforço para aliviar a pesada carga de dívida do Quénia, com os pagamentos de juros a consumirem 37 por cento das receitas anuais.
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